Entrevista:

A máscara arrancada

José Castello

No Mínimo - 21 de agosto de 2004


05.08.2004 | Circula na Internet uma “entrevista sensorial” com Clarice Lispector, o que não deve ser confundido com as reportagens psicografadas dos espíritas, ou qualquer outra peripécia mediúnica. Vinte e sete anos depois da morte da escritora, o procedimento é bem simples: a cada pergunta, os repórteres vão aos romances de Clarice em busca das respostas. O mais fantástico: eles as encontram, ou acreditam que encontram.

Uma confusão elementar sustenta esse procedimento, equívoco, enfim, bastante habitual: o que leva a misturar as vozes dos narradores de romances com as vozes de seus autores. Clarice Lispector foi, sem dúvida, uma escritora para quem vida e obra não se desligavam. Ocorre que essa ligação é muito mais sutil, e complicada, do que a associação mecânica e simples entre o que dizem seus personagens e aquilo que ela supostamente pensava.

A expressão literária é uma complexa liga de elementos contraditórios, em que entram a memória, as imagens do inconsciente, as fantasias pessoais e a imaginação, entre outros componentes. A literatura é, por isso, uma máquina de enunciados dolorosos, que traz em seu bojo a mescla aflitiva da alegria de criar com o horror de não poder dizer. Autores que adotam essa postura radical, como foi o caso de Clarice Lispector, e como é também o caso de João Gilberto Noll, pagam um alto preço íntimo por sua escolha. Um desses castigos: ser tomado por quem não é. Não é fácil - mas é o único caminho para escrever grandes livros.

Antes de inventar personagens para oferecer a seus leitores, um escritor precisa criar um personagem para si mesmo, isto é, forjar a máscara que usará para escrever. Precisa decidir que papel deseja desempenhar e em que tipo de jogo quer apostar. “Eu me preparei desde menino para atuar”, admite o gaúcho João Gilberto Noll, de quem a editora W11 está lançando o romance “Lorde”. Nele, Noll escolhe o mais traiçoeiro dos disfarces: o da máscara arrancada. Sob a máscara que cai, em vez de descobrir a verdade, como em geral se supõe, ele encontra um homem que se debate em desespero para enunciar palavras e se expressar. Encontra, em si mesmo, o escritor.

“Lorde” narra a história de um escritor que desembarca em Londres para uma aventura vaga, cujos contornos não domina e que ele interpreta como uma espécie de missão. “Qualquer finalidade improvável podia me esperar”, diz o escritor de Noll, que sabe apenas que foi convidado à Inglaterra por causa dos sete livros que escreveu. Muitos escritores brasileiros, entre eles o próprio Noll, costumam desembarcar na Europa, a convite de governos e de universidades, para palestras, seminários, leituras. O personagem de Noll não descarta essa hipótese mais previsível, a do convite profissional; mas logo percebe que algo bem mais desagregador o aguarda.

É que o protagonista de “Lorde”, a rigor, desembarca dos livros para provar da existência - ou, para dizer melhor ainda, para experimentar a inexistência. Chega a Londres, e é com imensa dor que faz essa descoberta, para se tornar outra pessoa. O inglês que o convidou o instala no bairro de imigrantes de Hackney. Mal se acomoda no pequeno apartamento de subúrbio, ele passa a sentir os primeiros sinais de uma grave dissolução interior. Sem entender os propósitos do inglês, e enquanto espera que os fatos se aclarem, o escritor passa a vagar pela cidade. O que parece uma busca é, na verdade, um abandono. Quanto mais ele caminha, mais regride e se desagrega.

Para emprestar outras cores ao novo homem que passou a ser, o escritor de Noll decide, primeiro, pintar os cabelos de castanho-claro e ainda maquiar o rosto, na esperança de recuperar a juventude. A solução não funciona. “A tinta escorre de minhas têmporas fazendo uma meleira desgraçada”, relata. “Se era humilhante? Eu não sabia mais com exatidão o teor dessa palavra.” Com o eu aos frangalhos, os fatos, mesmo as mais repugnantes, já não podem ofendê-lo. “Tudo se fundia em minha cabeça, feito a tintura e a maquiagem que escorriam pelo meu rosto patético.” Entre espasmos e farrapos, ele começa a deixar de ser.

Lentamente, o escritor entende que foi acometido por uma amnésia profunda, e que regrediu ao analfabetismo, transformando-se em um andarilho a quem só resta rastejar pelas ruas e provar de relações fracassadas. Torna-se uma assombração, cada vez mais tênue e disforme, um sujeito que se evapora. Ele se vê, então, como “um ser sem estrutura dorsal para conviver com seus iguais”. O escritor é internado num hospital para uma cura que não pode compreender; descobre-se sitiado entre tropas do exército que combatem terroristas invisíveis; experimenta vagas experiências sexuais, que sempre o frustram. No estado de evaporação em que vive, ainda assim, só o impulso sexual consegue produzir alguns sinais vitais.

O novo romance de Noll é, ao mesmo tempo, a história de um escritor que deseja se livrar de sua máscara literária e o retrato contundente dos escritores contemporâneos, com sua imagem cada vez mais agigantada e, ao mesmo tempo, esmaecida, de sujeitos prensados entre a busca do sucesso (dinheiro) e a busca do prestígio (glória). Todo escritor aspira secretamente ao papel de lorde, mas o escritor-personagem de Noll, ultrapassando o próprio desejo, consegue livrar-se dessas falsas esperanças. Do outro lado da miragem, no miolo da máscara, contudo, o que ele encontra é só um grande vazio.

Ainda que se ocupe dos aspectos teatrais da vida, a literatura de Noll não se reduz a uma encenação, ou a um brilhante jogo intelectual. Ela é, muito mais, expressão ou, como ele mesmo diz, o “drama da expressão”, que no homem de hoje envolve aspectos radicais e intenso desespero. Transformada numa evocação dramática do humano, a literatura de Noll se torna, assim, uma celebração, ainda que cruel, da existência.

Em Lorde, João Gilberto Noll, mais uma vez, se joga de corpo inteiro na escrita, lidando inclusive (e aqui está a armadilha) com aspectos e fragmentos de sua vida pessoal. Só que esse ponto de partida psicológico, em vez de servir como fundamento para um retrato, vem estilhaçar qualquer possibilidade de imagem. O título, “Lorde”, já é, em si, uma ironia, pois Noll é um sujeito desencantado com os rótulos honoríficos e a ostentação intelectual. É dos resquícios dessa máscara de escritor, que mais parece uma máscara mortuária, que ele quer se livrar.

Lançando-se para fora da identidade de escritor, procurando desesperadamente pelo que, em seu interior, resta do homem, é nesse movimento que Noll, no entanto, se põe a escrever. Mas, ao contrário de seu personagem, que termina incorporando, e depois sendo destruído, pelo sujeito que o convidou, e assim não chega a escrever uma só linha, Noll, o escritor, e não seu personagem, faz da queda o motivo por excelência de sua escrita.

Na conversa que se segue, João Gilberto Noll procura clarear alguns dos sentimentos que o levam a escrever livros como “Lorde”, cuja leitura provoca uma mistura, nada cômoda, de prazer e desassossego. E se mostra bastante cético diante da imagem contemporânea do escritor, a de um sujeito frívolo, interessado ou em enriquecer com a literatura, ou em se engrandecer com ela, figurando, quem sabe, na lista dos notáveis da, como ele diz, “nova novelística”. Sem nenhuma curiosidade pelas duas atitudes, Noll faz da literatura algo que ultrapassa tanto a profissão e o sucesso, quanto o refinamento e a consagração. Algo que, mesmo sendo mentira da primeira à última linha, se agarra desesperadamente à vida.

Clarice Lispector dizia: “Eu escrevo para não morrer.” É com a mesma aflição extrema que Noll lida com as palavras, e não apenas em suas ficções, como se pode observar na entrevista que se segue.

Seu escritor está retido na malha da literatura. Ampla malha, que oferece muitas vantagens (bolsas, convites de viagens, simpósios, prêmios), mas que também asfixia. Você é um escritor que gosta de falar em público e que, aliás, fala, e também lê seus textos, muito bem. Como se relaciona com essa teia da carreira literária? Em que medida ela se tornou inseparável da literatura?

Não tenho a menor dúvida de que isso que você chama de teia e que estaria fora dos livros é da índole da pura expressão literária. Quando falo diante de uma audiência, ou ao ler trechos de meus livros para ela, estou exercendo o papel da ficção, porque o que tenho para dizer ou ler não é um assunto localizável em discussões estritamente sociais. O que faço nesse caso é um pouco levantar o tapete para apontar o que calamos, muitas vezes sob o medo da pecha da demência e outras inutilidades para a vida cotidiana.

Seu escritor quer se transformar. Primeiro, usa o recurso da maquiagem, da tintura de cabelo etc. Faz para si uma máscara, como no teatro. Quando você lê seus textos em público, há um forte sentido de interpretação – como o do ator no palco. Nessas horas, me parece, você atua como um ator. Para escrever, um escritor precisa antes se definir enquanto personagem?

Eu me preparei desde menino para atuar. Cantando em festividades ou declamando. A escrita é apenas uma decorrência disso. A escrita é eu poder elaborar, fabular, diante de outros olhos, a apresentação de um personagem ideal que carece de ser apresentado, tal a sua evocação dramática do humano, que todos querem esquecer. Por que esquecer? Porque esse fulano perturba o desempenho de nossa funcionalidade, entende? Talvez ele relembre a infância precocemente abortada pelas granadas da realidade.

”Lorde”, certamente, vem de experiências concretas que você teve na Inglaterra – ou não? Se isso é verdade, gostaria que você as relatasse. A fronteira vida/ficção em suas mãos fica ainda mais sutil do que ela já é. Como fica o sentimento de exposição pessoal? E em que medida seus leitores o confundem com seus personagens – como fazem muitas pessoas que acompanham as telenovelas?

É preciso muita, mas muita telenovela no lombo para confundir literalmente o que é contado em “Lorde” pelo narrador e o que eu vivi de fato na minha temporada em Londres, acho eu. Talvez no início do livro exista algum desnudamento psicologista. Mas, à medida que o romance se desenrola, o cidadão João vai se distanciando do protagonista, não naquilo que rege suas mentes, porque isso pode vir até da mesma matriz - que pode ser chamada de uma única e mesma inadequação humana -, mas no que diz respeito à factualidade ficcional. Eu escrevi este livro que não foi escrito pelo personagem de Lorde, simplesmente porque ele não escreve uma linha sequer na Inglaterra. Nem de fato participa de palestras. Eu, João, escrevi lá uma história, participei de palestras, e não fui incorporado, como no romance, por outro cidadão. Estou aqui, de volta. Está certo, concedo: voltei numa crise psicológica braba, num estado como jamais saí da escrita de um livro. Mas aos poucos me reconciliei com o mundo exterior, que remédio? Pirar?

Seu romance tem ainda um elemento muito contemporâneo, que é o sentimento de perseguição. Bem, há até um movimento de soldados que supostamente estão ali para enfrentar uma indefinida ameaça do terror. Isso tudo exacerba uma atmosfera de grande suspense. Em que medida o sentimento de perseguição é uma peça chave em sua literatura?

O sentimento de perseguição, a paranóia, é a alma dos meus livros. Meu segundo livro e primeiro romance, “A fúria do corpo”, começa com a frase: “O meu nome não.” Ou seja, não darei pistas ao leitor. Assim, quanto mais vaga, mais indeterminada for a atmosfera dos meus enredos, se é que eles existem, menos chances de eu ser encarcerado pelo olhar do outro sempre aprisionado em gêneros, espécies ficcionais, horizontes estéticos. Por isso não posso dar soluções de cunho policial à tensão que norteia cada livro, porque isso seria trair uma verossimilhança que eu defendo caninamente: à da vida, sim, senhor, essa que exprime o congestionamento do nosso cotidiano de situações não resolvidas, gestos flutuantes, dúvidas atrozes, esboços que não se completam...

Percebo, nas frestas de “Lorde”, a sombra de Franz Kafka. O convidado que chega sem saber para que, como o agrimensor de “O Castelo”. A transformação monstruosa e incontrolável, como em “A Metamorfose”. O ser arrastado por engrenagens que se desconhece, como em “O Processo”. Você trabalhou com essa relação, ou ela veio só ao acaso?

Ah, ela veio ao acaso. Mas como desconhecer o suposto universo kafkiano, já que estamos falando de um dos fundadores da nossa modernidade? Em que pé estão ainda hoje as coisas para que não vivamos continuamente esse clima de instituições surdas ao nosso clamor, mas ao mesmo tempo dependentes dele?

Depois de uma desagregação poética extrema, que levou a “Mínimos, múltiplos, comuns”, você retorna à narrativa mais clássica, se é que podemos dizer isso. Foi preciso se desagregar para se re-agregar? O que se passou nesse período de desagregação, que inclui também, ou se inicia, em “Canoas e marolas”?

Os “Mínimos” foram escritos duas vezes por semana para serem publicados na “Folha de S. Paulo”. A fragmentação vertical que os marca é inerente ao seu próprio modo de produção - o de fazê-los em prestações que duraram três anos e meio. Os infra-sentimentos que os governam exigem uma formulação decididamente imprecisa, digamos, e esta é a sua ousadia específica.

Num cenário literário dominado pelo novo realismo, como você se sente, praticando uma literatura que beira a experiência delirante? O que é a realidade para você?

A realidade para mim é a dilatação mental suprema, quase uma deformidade ideal.

Voltando a “Lorde”, o livro faz do escritor, um personagem. Às vezes parece que a melhor literatura de hoje já não consegue tratar mais de temas “externos”, só consegue voltar-se para dentro. É certamente um impasse - mas está em outros ótimos romances que acabam de ser lançados no Brasil, como “A noite do oráculo”, de Paul Auster, e “A viagem vertical”, de Enrique Vila-Matas. Isso se resolve? Para onde vai a literatura?

Não cabe a mim, enquanto produtor da escrita, saber se isso se resolve ou a que direção isso levará. A minha possível contribuição se dá na própria ficção, na feitura quase desesperada de novas tramas e linguagens. É só assim que consigo responder a essas questões, não conceituando como teórico. É também o drama da expressão que tento levar ao público quando falo a ele e não soluções e direções da nova novelística.