Entrevista:

O Estado de São Paulo
27 de julho de 2003

Os instantes ficcionais de João Gilberto Noll

O escritor começa a ter toda a sua obra relançada e já prepara um novo livro, para agosto; trata-se de uma experiência com o texto narrativo, sob o título de 'Mínimos, Múltiplos, Comuns' 

UBIRATAN BRASIL 

O relançamento da obra do escritor gaúcho João Gilberto Noll, pela Editora W11, não privilegiou a ordem cronológica: o primeiro volume, recentemente lançado, foi Harmada (102 págs., R$ 26). Não houve aqui uma escolha fortuita, pois se trata de um livro de transição. Como observa José Castello na apresentação, a partir dele é possível ler os anteriores e os posteriores, divisando um sentido que os ultrapassa. "O que nele se afirma é a imaginação", diz. "Através de seus relatos, o narrador encanta o mundo, ligando dejetos e fragmentos." 

O livro acompanha um ex-ator que, escondido em um asilo para mendigos, consola-se com o projeto de uma peça de teatro. Ele pretende voltar a Harmada, a capital de seu país, mas uma paralisia o deixa imóvel, amparado apenas pela arte. Em diversas oportunidades, Noll já se referiu aos aspectos esquizofrênicos em sua escrita. Em seu último livro, por exemplo, Berkeley em Bellagio, um homem tem a memória vacilante, provavelmente por causa de um aneurisma, mas os traços de instabilidade servem para reforçar uma idéia: a de que memória não é uma faculdade exclusiva da recordação, mas também da invenção. 

O próximo volume, a ser lançado em agosto, é o inédito Mínimos, Múltiplos, Comuns, constituído por uma série de narrativas minimalistas a que o autor denominou "instantes ficcionais". Mais que contos, são romances inteiros, minúsculos, como Noll conta na entrevista a seguir, realizada por e-mail. 

Estado - O que são os 'instantes ficcionais' que compõem Mínimos, Múltiplos, Comuns? 

João Gilberto Noll - Acho que os Mínimos... se revelam como pequenas "consagrações de instantes", como dizia Octavio Paz. Ou seja, microcontos poemáticos em que você suspende por agudos momentos o fluxo normal de uma narrativa, a princípio mais extensa e que parece correr pelo livro todo. 

Essa narrativa, é claro, só vai aparecer na ponta de icebergs de cada peça de escrita. Então a coerência do título: Mínimos, Múltiplos, Comuns. 

Estado - Berkeley em Bellagio foi apontado pelos críticos como uma guinada em sua carreira literária. O que pensa disso? Mínimos, Múltiplos, Comuns segue o que seria essa sua nova tendência? 

Noll - Formalmente, não se trata de um romance, como Berkeley em Bellagio, mas de milimétricos surtos ficcionais. A amnésia corre solta como no romance. Seres que se esquecem da ordem de seus afazeres no cotidiano ou da razão de suas ações. Acho que se trata de uma crise da cápsula que encerra o eu de cada um. Eles se vêem temerosos e ao mesmo tempo atraídos pela diluição das margens entre o eu e o mundo, e isso quase os transforma em pobres heróis épicos, sem eira nem beira. E a chispa de esperança de cada situação não está fora das narrativas, mas no próprio tom lírico que embala cada clímax das histórias. Ou seja, a minha nova tendência, se existe, está inteira aí: num franco hibridismo entre a prosa e a poesia. Uma utopia da própria linguagem.No próprio 'querer' a literatura além dos gêneros. 

Estado - A descrição de Harmada, especialmente o interesse pelas engrenagens que movem a própria arte da representação, faz lembrar uma peça de teatro. 

Mas suas características são de romance. Como localiza sua linguagem literária em meio a esses gêneros tão flutuantes? 

Noll - Sim, você aponta aqui justamente essa flutuação dos gêneros de que eu falava. Só que agora entre o romance e o teatro. De fato, eu não poderia fazer uma peça teatral no corpo de um texto que não se quer denotativo, que não se quer enunciando coisas como "me dá um copo d'água" ou "pode sentar". 

Justamente por aspirar-se, já em Harmada, a uma espécie de prosa poética - de uma maneira ainda não tão radical como em Berkeley em Bellagio e Mínimos, Múltiplos, Comuns. O teatro entra aí mais como possibilidade de exercício desejante, de você viver o seu desejo de encarnar outras vertigens, outros horizontes. 

Estado - Sua escrita vem se apresentando de forma mais limpa, a julgar pelos últimos romances, apesar das frases longas e tortuosas. Trata-se de uma forma de 'pegar o leitor pelo cangote', como já disse uma vez? 

Noll - As frases longas e tortuosas fazem parte de uma tentativa de suprir um núcleo de ansiedade humana que não quer calar. O humano tem pressa, especialmente num país como o nosso, onde questões essenciais são continuamente empurradas com a barriga. Daí a necessidade premente de uma locução que dê conta de tudo ao mesmo tempo, numa única frase, sem tempo de pontos finais por tal compulsão ao simultaneísmo, por tal compulsão de fazer da literatura quase que uma arte espacial, plástica, em que convivam numa só sentença a sua negação e afirmação, o tempo passado, presente e futuro, etc., etc. Como afirmou um crítico, em Berkeley em Bellagio tudo alude a tudo - é um texto em que cada alusão é como se uma isca atrás de outras iscas de assuntos, e assim indefinidamente. Mas a minha linguagem em termos vocabulares, hoje, é mais transparente do que já foi em outros livros meus. 

Trata-se de uma decorrência da idade, da maturidade. A gente vai limpando, limpando o terreno pra dar só o osso do significado ao leitor. 

Estado - Seu texto é marcado, entre outras coisas, pela coragem. Como vê algumas tentativas no sentido contrário, ou seja, que buscam uma certa moralização da literatura? 

Noll - Moralização da literatura... estamos falando no âmbito do politicamente correto? Para mim, a literatura tem um forte apelo amoral. 

Nela deve ser desvelado aquilo que socialmente costumamos pôr para debaixo do tapete. A ficção que interessa, ao meu juízo, é aquela que prefere chegar às raias do demencial a calar-se diante do que se convencionou chamar de abjeção. No entanto, em cada gesto autenticamente ficcional deve estar presente uma ação ética, no sentido de que não se escreve para agradar aos bem pensantes, mas com um sentimento de canina fidelidade ao que é, ao ontologicamente irrefreável. Coisa que não se confunde com uma tendência naturalista, ao contrário: por aí se chega à reinvenção, pois tudo que existe grita por mais! 

Estado - Está previsto o lançamento, para o próximo ano, do segundo volume de Berkeley em Bellagio. De que forma histórias pessoais estão impressas na ficção? 

Noll - Ah, é uma dialética tremenda. E cada vez mais aguda. Nesse sentido me considero um escritor existencialista. Jamais me reporto a ações diretas, irrefutáveis da minha experiência vivida. Mas, com a maturidade, já não procuro em Marte o que posso mostrar com o aval do meu próprio paladar, olfato e, sobretudo, tato. Sim, literatura é uma fricção com o real, mas para nele tentar novas aproximações, novas produções de sentido. 

Estado - Três de suas obras estão sendo adaptadas para o cinema. Seriam os textos cuja escrita mais se aproximam da imagem? Qual a sua expectativa em relação às três versões? 

Noll - Minha expectativa é a melhor possível. E nessa aposta eu não perderei. Acho que realmente são livros meus em que as celebrações das aparências, da fisicalidade, são mais visíveis, palpáveis, cruas. Nesses livros, os corpos humanos ou não estão mais jogados à deriva, prontos e despojados para serem retidos pela imagem cinematográfica, sim! 

Estado - Foi sugestão sua escalar Paulo César Pereio no papel do Ator, em Harmada? 

Noll - A mais total e completa confluência com a idéia do cineasta... 

Estado - Como é sua relação com cinema? 

Noll - De cinéfilo. Não vejo menos de três filmes por semana. 

Estado - Há novos nomes na literatura que o vêm surpreendendo? 

Noll - Vários. Marcelo Mirisola, Marcelino Freire, Ronaldo Bressane, Daniel Galera, Daniel Pellizzari, o poeta Fabrício Carpinejar. É uma geração que está reinventando a literatura brasileira.