Do Flâneur ao "Zapeur"
As técnicas de reprodução e produção de imagens 
em João do Rio e João Gilberto Noll


Alexandre Faria

Publicado na Revista Qvinto Império, Salvador (BA)

Poi piovve dentro a l’alta fantasia.
(Dante: "Purgatório"; XVII, 25)

Visibilidade

Em Seis propostas para o próximo milênio, Italo Calvino relaciona a visibilidade entre os valores literários que devem ser preservados para além do final deste século. O autor discorre, no capítulo "Visibilidade", sobre a fantasia, o sonho, a imaginação, a partir de algumas imagens que retira d’A divina comédia. Compara as imagens criadas por Dante a projeções cinematográficas ou recepções televisivas. Em seguida, Calvino distingue dois tipos de processos imaginativos: o que parte da palavra para chegar à imagem visiva, exemplificado pela leitura e o que parte da imagem visiva para chegar à expressão verbal. (Calvino: 1990, p. 99). Cria-se assim um movimento cíclico em que não se sabe se a capacidade imaginativa está na origem da expressão verbal, ou vice-versa:

No cinema a imagem que vemos na tela também passou por um texto escrito, foi primeiro "vista" mentalmente pelo diretor, em seguida reconstruída em sua coporeidade num set, para ser finalmente fixada em fotogramas de um filme. (Calvino: 1990, p. 99)

Antes mesmo da invenção do cinema, portanto, a relação do homem com as imagens já se apresentava plena. Por outro lado, os avanços das técnicas de reprodução e produção de imagens - que tiveram início no século XIX, com a litografia e, em seguida, com a fotografia, e continuaram se desenvolvendo no século XX com o cinema e, mais tarde, com o vídeo - não só promoveram mudanças definitivas nas formas de reprodução imagística tradicionais como a pintura, mas também instauraram modificações radicais na expressão verbal, especificamente na literatura.

O próprio Calvino, ao optar pela manutenção da visibilidade, o faz em função de um imaginário que se forma numa época em que a literatura não mais se refere a uma autoridade ou tradição que seria sua origem ou seu fim, visa antes à novidade, à originalidade, à invenção e constata que no balanço entre a prioridade da imagem visual ou da expressão verbal, aquela prevalece.

Manter a visibilidade - dar a ver - é uma das preocupações expressas por Calvino em função de uma humanidade cada vez mais inundada pelo dilúvio das imagens pré-fabricadas:

Hoje somos bombardeados por uma tal quantidade de imagens a ponto de não podermos mais distinguir a experiência direta daquilo que vimos há poucos segundos na televisão. Em nossa memória se depositam, por estratos sucessivos, mil estilhaços de imagens, semelhantes a um depósito de lixo, onde é cada vez menos provável que cada uma delas adquira relevo (Calvino: 1990, p. 107)

Mazelas-maravilhas da vida moderna, soluções-problemas com que a humanidade aprendeu a conviver durante o século atual. A vertiginosidade da era do automóvel, a perda da aura da obra de arte, das cidades e, quem sabe, da própria humanidade. Avanços-retrocessos da modernidade, enfim, que foram alcançados pelo domínio de novas técnicas. A eles somamos, agora, o dilúvio de imagens, que este século também presenciou e , de certa forma, deixou o olhar um tanto viciado e incapaz de ver para além da superfície.

Na Literatura Brasileira a influência das técnicas de produção de imagens é perceptível desde o início do século. Às vezes assumida de forma utópica, em função do progresso e da modernidade, outras, tendendo à distopia, à relativização de um olhar mais crítico, essas técnicas sempre caminharam pari passu com a literatura.

Optamos por demonstrar como as técnicas cinematográficas se imbricam com as da narrativa literária em dois momentos distantes no tempo: o primeiro é o momento inaugural, em João do Rio, autor de Cinematógrafo e outras crônicas que registram os primórdios da fotografia e do cinema no Brasil. Como se dá esse encontro inicial entre a Literatura Brasileira, especificamente na obra de João do Rio, e aquelas técnicas? A esta pergunta tentaremos responder através de um close-up em crônicas, como "Cinematógrafo", "A pressa de acabar", "Vida vertiginosa", algumas das que dramatizam a questão.

Num segundo momento abordaremos a mesma relação no final deste século. Muitos autores contemporâneos, como Rubem Fonseca, João Gilberto Noll ou Sérgio Sant’Anna incorporam em seus textos tanto a linguagem cinematográfica quanto a de outras mídias. Centraremos nossa análise no romance A céu aberto, de Noll, buscando observar como aquelas linguagens se comportam no texto literário e procurando indagar as razões da insistência no dilúvio de imagens nos textos contemporâneos e como essa insistência surte algum efeito e possibilita a visibilidade.

João do rio: Utopia/distopia

A obra de João do Rio se desenvolve em um duplo que oscila entre a euforia da modernidade no registro do Rio de Janeiro em sua feição cosmopolita - a Frívola City - e as reportagens em que um olhar mais atento e vagaroso cede espaço à reflexão. Segundo Antonio Candido, nesses textos, João do Rio desafina no coro das louvações tipo "o Rio civiliza-se", que saudava a urbanização e o saneamento como feitos suficientes. Estava, na verdade, mostrando a ferida escondida pela ostentação.(Candido: 1980, p.90)

Visto de outra maneira, o olhar que o autor lança à Frívola City também traz internamente marcas de uma relativização. A própria adjetivação - frívola - atribuída à cidade não deixa da trazer marcas da ironia que corrói a pretensa euforia mundana de um centro cosmopolita.

A opção que o autor manifesta pela crônica associa-se à fotografia - numa tentativa de fixar em instantâneos as imagens da cidade - que era vista como "mais um exagero, mais uma doença nervosa" que chegava com outros aparatos modernos (Gomes: 1996, p. 85). Ou seja, da mesma forma que repudiava a técnica moderna, incorporava-a automaticamente a sua escrita e, se a fotografia se mantém na superfície da imagem, assim suas crônicas parecerão se comportar, fixando o momento e as modas, como demonstra a nota introdutória de Vida vertiginosa:

Este livro, como quantos venho publicando, tem a preocupação do momento. Talvez mais do que os outros. O seu desejo e a sua vaidade é trazer uma contribuição de analise à época contemporânea suscitando um pouco de interesse histórico sob o mais curioso período de nossa vida social que é o da transformação atual dos usos, costumes e idéias. Do estudo dos homens, das multidões, dos vícios e das aspirações resulta a fisionomia característica de um povo. E bastam às vezes alguns traços para que se reconheça o instante psycho da fisionomia. É possível acoimar de frívola a forma de tais observações! Nem sempre o que é ponderado e grave tem senso... (Rio: 1991, p. 1)

A preocupação do cronista em justificar seus rápidos traços da fisionomia dos homens e da cidade é um indício de sua ainda pouca familiaridade com a nova técnica fotográfica, aos poucos incorporadas ao seu estilo. Flora Süssekind atenta para o fato de que a incorporação da fotografia e do cinema por João do Rio se consuma muito mais através de um desejo mimético, ligação via analogia do que propriamente via linguagem literária:

Sua relação com o novo horizonte técnico é basicamente de encantamento; impresso nas crônicas; de mímeses que se deseja literal, mas de apenas alguns de seus traços - daí a tentativa de pensar a crônica como fita de cinema ou de delinear personagens quase figurinos (Süssekind: 1987, p. 47)

Em Cinematographo, o autor também aponta para as questões em torno da vertiginosidade da vida urbana, da superficialidade frívola com que as questões são abordadas e cria uma nova imagem:

Se a vida é um cinematógrafo colossal, cada homem tem no crânio um cinematógrafo de que o operador é a imaginação. Basta fechar os olhos e as fitas correm no cortical com uma velocidade inacreditável. Tudo quanto o ser humano realizou não passa de uma reprodução ampliada de sua própria máquina e das necessidades instintivas dessa máquina. O cinematógrafo é uma delas. (Rio: 1909, p. xiii)

A crônica, dirá mais à frente João do Rio, evoluiu para a cinematografia. E o que poderia permanecer apenas no reconhecimento de uma nova linguagem, transforma-se em crítica social contra a forma apressada e superficial com que o cinema condiciona o olhar humano: 

Com o delírio apressado de todos nós, é agora cinematográfica, - um cinematógrafo de letras, o romance da vida do operador no labirinto dos fatos, da vida alheia e da fantasia - mas romance em que o operador é personagem arrastado na torrente dos acontecimentos. Esta é a sua feição, o desdobramento das fitas, que explicam tudo sem reflexões, e como o século está cansado de pensar, e como a frase verdadeiramente exata da humanidade na fartura dos casos é o clássico: - já vi! O operador escreve despreocupado, pouco lhe importando que vejam a fita, que a compreendam ou não ou que tornem a vê-la. (Rio: 1909, p. x)

É curioso notar que, criticando - não o cinema em si - mas a forma como este pode ter promovido mudanças de usos e costumes da sociedade, João do Rio aponta para uma das grandes questões da vida urbana moderna que se agravou ao longo deste século: a velocidade, a pressa. Velocidade é do que precisam os fotogramas montados em uma fita para se obter a impressão do movimento. Neste sentido torna-se plenamente compreensível a metáfora do homem-cinematográfico, realizada na crônica "A pressa de acabar":

O homem-cinematográfico acorda pela manhã desejando acabar com várias coisas e deita-se à noite pretendendo acabar com outras tantas. É impossível falar dez minutos com qualquer ser vivo sem ter a sensação esquisita de que ele vai acabar alguma coisa. O escritor vai acabar o livro, o repórter vai acabar com o segredo de uma notícia, o financeiro vai acabar com a operação, o valente vai liquidar um sujeito, o político vai acabar sempre várias complicações, o amoroso vai acabar com aquilo. Daí um verdadeiro tormento de trabalho. (...) O homem-cinematográfico, comparado ao homem do século passado, é um gigante de atividade. O comerciante trabalha em dois meses mais do que o seu antecessor em dez anos; (...). (Rio: 1909, p. 386)

Essa crítica à velocidade imposta pelo mundo do trabalho aproxima a imagem do cronista criado por Paulo Barreto à do flâneur, personagem da aurora da modernidade que nega aquele mundo e sua veloz forma de produção, ao caminhar livre pela cidade, longe da multidão e, muitas vezes, com a velocidade dos passos pontuada por tartarugas que eram levadas a passear nas galerias. (Benjamin: 1989, pp. 50-51). Por outro lado, a identificação com o repórter, inerente ao cronista, não permite que João do Rio torne-se o flâneur típico, completo, mas sim seu sucessor, pois, de certa forma, o repórter nada mais é do que o flâneur inserido em um mercado de trabalho.

Em última análise, identificando-se com o repórter, João do Rio se insere dentro do mundo que critica, esfacelando o distanciamento que, em princípio, seria necessário para criticar. Isso dá margem ao que se manifesta como o duplo de sua obra. Instaura uma distopia paralela ao discurso utópico da modernidade. Encontram-se, assim, ecos de sua postura na pós-modernidade, que também se caracteriza pela crítica à modernidade nascida no interior da própria modernidade. Como aponta Renato Cordeiro Gomes, o pré e o pós-moderno alinham-se: o fim deste século ecoa em marcha regressa na letra de seu começo. (Gomes: 1996, p. 109)

João Gilberto Noll

A influência do cinema na narrativa de João Gilberto Noll é inegável. Seus textos são montados a partir de imagens que emergem de um espaço difuso entre a imaginação e a realidade; nunca fica bem claro se a narrativa tem origem no que o narrador vê ou no que ele sonha. Essa diluição de fronteiras entre visão e imaginação revela apenas o que realmente sobreviveu na narrativa: a imagem. O texto é, em suma, um agenciamento de cenas oriundas de diversas fontes, desde a memória até o olhar do narrador - uma montagem:

De manhã me levantei com o galo, enrolei-me no lençol, abri a porta que dava para uma estrada de terra, depois um matagal. Uma galinha ciscava a meus pés e suas penas eram tão arruivadas que batiam nos olhos como um sorrateiro convite a não sei bem o quê, a andar talvez - e foi o que fiz, envolto no lençol fui andando em passos lentos, uma flutuante figura da Bíblia quem sabe, um corpo que não gastava esforço algum para vencer distâncias ... (Noll: 1996, p. 75) 

A narrativa se constrói em superposições de fotogramas: 1- De manhã me levantei com o galo; 2- Enrolei-me no lençol; 3- Abri a porta; 4- uma estrada de terra; 5- um matagal, assim sucessivamente. O que deve ser analisado, no caso, é a qualidade da montagem, pois num mundo impregnado pelas imagens fáceis, pré-fabricadas, torna-se vital um processo de seleção. Walter Benjamin estabelece os valores de eternidade e de perfectibilidade para a obra de arte e conclui que são valores inversamente proporcionais. A eternidade é um valor em decadência no século do cinema, que prima pela perfectibilidade:

O filme acabado não é produzido de um só jato, e sim montado a partir de inúmeras imagens isoladas e de seqüências de imagens entre as quais o montador exerce seu direito de escolha - imagens, aliás, que poderiam, desde o início da filmagem, ter sido corrigidas sem qualquer restrição. (Benjamin: 1994, p. 175)

No caso da narrativa de João Gilberto Noll, o que se acentua no processo de montagem é a opção pela subtração das relações de causalidade entre as cenas. No mesmo trecho citado, observa-se a ausência de motivos que levam o narrador a andar. É como se cada fotograma ou cada seqüência de cenas possuísse uma autonomia em relação aos demais. Essas imagens são criadas, presenciadas e percorridas por um personagem que não gasta esforço em vencer distâncias.

A figura do andarilho que percorre as imagens que ele próprio cria é uma constante na ficção de Noll. No caso de A céu aberto não há exceção: o romance tem início com o narrador partindo com seu irmão doente para o campo de batalha - no qual se trava um guerra cujos motivos e inimigos são desconhecidos - a procura do pai para pedir-lhe dinheiro e auxílio para o irmão. Sem a capacidade de intervir junto aos fatos, ele pode apenas narrá-los: o irmão é levado para a enfermaria do acampamento militar e o protagonista é convocado para o exército do qual desertará. Dando continuidade à sua existência errática, o narrador encontra uma mulher que pode ser seu irmão metamorfoseado, com quem se casa. Trabalha como vigia noturno num paiol abandonado. Certo dia, ao voltar do trabalho encontra um dramaturgo, filho de um antigo conhecido, com quem compartilhará a esposa. Mulher e amigo o abandonarão, rumo a Estocolmo. Ela retorna, ele a recebe de volta e a assassina e, perseguido pelo exército que busca os desertores, embarca em um navio mercante, onde vive confinado numa cabine do porão. Finalmente, foge do navio em um porto de uma cidade desconhecida, é interpelado pela polícia local e proibido de sair da cidade; encontra uma prostituta que leva para o hotel; vê, no seu quarto, um retrato de um homem procurado que bem poderia ser sua própria imagem e sente uma enorme vontade de rir, dar uma boa gargalhada como se estivesse a céu aberto, logo ali, perto do mar. (Noll: 1996, p. 164)

Como esse rápido resumo do enredo do romance deixa entrever, as passagens de uma seqüência para outra obedecem a uma montagem que não se pauta pelo princípio da perfectibilidade. Fica-se diante da própria vertiginosidade da aparição de fotogramas que não podem ser concatenados. Na verdade, o romance de João Gilberto Noll afasta-se do princípio de montagem cinematográfica e se aproxima da imagem televisiva. Vejamos como Nelson Brissac a define:

A televisão contrapõe-se radicalmente à contemplação. Em primeiro lugar porque na TV a imagem passa por frações de segundo, sem exigir do observador a distância que convencionalmente requer um quadro ou uma paisagem. Assistimos à TV com uma atenção dispersa, sem concentração, apenas deixando que aquele fluxo ininterrupto nos atravesse. A televisão é um contínuo de imagens, em que o telejornal se confunde com o anúncio de pasta de dentes, que é semelhante à novela, que se mistura com a transmissão do futebol. Os programas mal se distinguem uns dos outros. O espetáculo se distingue na própria seqüência, cada vez mais vertiginosa, de imagens. (Peixoto: 1996, p. 180)

Diante do inevitável dilúvio de imagens - chove dentro da alta fantasia, soprou Dante a Calvino - só resta ao narrador a deserção, o exílio. Mais do que um desertor do exército, o narrador de A céu aberto é um exilado na escrita. Foge de uma guerra que, como ele mesmo define, é uma guerra da qual se procura abrigo no Nexo, assim mesmo, com N maiúsculo, pois esse conceito aí é uma casa que alugamos em certos períodos para nos abrigarmos da guerra entre todas as coisas avulsas (Noll: 1996, p. 124). Essas coisas avulsas se identificam com as imagens que chovem na fantasia do narrador que, para conformá-las, só pode fazer uso da escrita, onde consegue mobilidade - deslocamento num tempo-espaço que não requer esforço para vencer distâncias. Não é à toa que, ao decidir partir, afirma, dirigindo-se ao irmão:

(...) falei incisivo que iríamos tentar encontrá-lo no charco do acampamento militar que fosse, você aparecerá limpo para ele, eu como irmão mais velho com a palavra, pedindo-lhe um dinheiro para comprar os remédios que o médico passaria para você. (Noll: 1996, p. 14 - grifo nosso)

Seu único valor, ou seja, a única coisa de que pode se valer, é a palavra. Em certos momentos, porém, a palavra parece apenas contribuir para aprofundar o precipício em que as imagens se projetam. O narrador de Noll, repetimos, não seleciona e monta fotogramas. Seu processo é o do vídeo-clip, do zapping, - a prática de trocar os canais de uma TV através do controle remoto, que acentua a desagregação da continuidade da programação (PEIXOTO: 1996, p. 180).

Renato Cordeiro Gomes, ao analisar como o flâneur poderia ser representado na pós-modernidade, propõe o zappeur como substituto daquele:

O antigo flâneur absorvido pela multidão e pela massa não tem mais lugar na cidade da via expressa, na sociedade dominada pelas tecnologias comunicacionais. Talvez tenha cedido o lugar para o zappeur que, escolhendo pontos e fragmentos urbanos, pode montar sua imagem da cidade, longe da rua.(GOMES: 1996, p.22)

O narrador de A céu aberto tem o olhar de um zappeur. Seu trânsito não é nas cidades, mas entre palavras e imagens selecionadas a esmo. As cidades podem ser qualquer uma ou nenhuma - estão ausentes. Percorrê-las é selecionar suas imagens que, por serem imagens, podem ser apenas imaginadas.

Do flâneur ao "zapeur"

Do flâneur ao zappeur, pretendemos apontar duas possíveis extremidades do caminho em que se imbricam as técnicas de montagem da imagem visual e as da narrativa, ao longo deste século. Finalizando, devemos retomar a questão da visibilidade, apontada por Calvino e lançar a seguinte questão, que vêm à tona a partir dos estudos teóricos de Nelson Brissac: é possível se resgatar uma ética das imagens? (Brissac: 1992). É possível torná-las novamente visíveis ou estaríamos condenados ao abismo do cinematógrafo e da televisão?

A forma profusa e vertiginosa como as imagens brotam no romance de Noll e em outros textos contemporâneos, poderia apontar para a impossibilidade de restauração da paisagem, do retrato, de cenas visíveis. A exposição insistente de imagens difusas - o zapping - leva a uma quase exaustão do leitor e do narrador. Nelson Brissac afirma:

A imagem explícita provoca o esgotamento da capacidade de descrever (...). Sob a ditadura da visão imediata, o olhar perdeu sua abrangência panorâmica. Isso vale também para o rosto: hoje não há mais o costume sistemático de retratar, com o que se faz uma verdadeira fisionomia de uma época. Sem personagens nem rostos, a literatura tornou-se introspectiva, voltada para os mistérios e percalços da alma humana. E a pintura, por seu lado, mergulhou cada vez mais na abstração. (PEIXOTO: 1992, p. 309)

Diferentemente do que propõe Brissac, não é pela longa exposição, pela durée, que o zappeur recupera a ética da imagem. Tal procedimento pode vir a se mostrar inócuo ao olhar do leitor condicionado pelas fitas do cinematógrafo. É na superexposição das imagens e das percepções do narrador que o texto obtém, numa espécie de anti-exposição, o tempo suficiente para que o leitor se dê conta da superficialidade em que as imagens se fundam e - no caminho contrário, buscando justamente o que a narrativa não dá a ver - tente recuperar, para além dos instantâneos dispersos da guerra conta o nexo e da frivolidade de fitas já vistas, a visibilidade. Não aquela plena como a de Dante, mas uma visibilidade seletiva no caleidoscópio precário em que se movimentam as cenas contemporâneas.

Bibliografia Citada

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989.
------------. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CANDIDO, Antonio. "Radicais de ocasião". In: Teresina etc. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, pp. 83-94.
GOMES, Renato Cordeiro. "Grafias urbanas". In: Veredas Revista do Centro Cultura Banco do Brasil, n° 5. Rio de Janeiro: CCBB, 1996.
-----------. João do Rio: vielas do vício, ruas da graça. Rio de Janeiro: Relume-dumará: Prefeitura, 1996.
NOLL, João Gilberto. A céu aberto. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens urbanas. São Paulo: SENAC : Marco d’Água, 1996.
------------. "Ver o invisível - a ética das imagens". In: NOVAES, Adauto (org.) Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
RIO, João do. Cinematographo (crônicas cariocas). Porto: Chardon, 1909.
------------. Vida vertiginosa. Rio de Janeiro: Garnier, 1911.
RODRIGUES, Maria Isaura Pereira. Sobre a pele do cinema: a poética de João Gilberto Noll. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UERJ, 1994.
SANT'ANNA, Sérgio. O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro. São Paulo: Ática, 1982.
SÜSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de letras. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.