Memórias desmemoriadas




José Castello
Jornal Valor / 20, 21 e 22 de setembro de 2002


O narrador de "Berkeley em Bellagio", novo romance de João Gilberto Noll, é um homem cuja memória vacila, e a culpa é atribuída vagamente a um aneurisma, de diagnóstico também incerto. Essa mente cLaudicante e a maneira como ela se põe a narrar já resplandecem na epígrafe de outro escritor gaúcho, o poeta Fabício Carpinejar: "Ainda que não me lembre, legarei memória." Consciência. de que a memória é uma faculdade que não remete apenas à recordação, mas também, e sobretudo, à invenção.
Os traços de instabilidade ultrapassam, contudo, os domínios da rememoração, contaminando a própria identidade do narrador que é, mas não é, João Gilberto Noll ele mesmo. "Berkeley em Bellagio e, seguramente, o romance mais pessoal que Noll já escreveu - ainda que até mesmo essa característica se coloque, todo o tempo, sob suspeita. Como acontece também num romance consagrado como o "Quase memória" (1995), que é, mas não é memória, ele também, de Carlos Heitor Cony.
O universo de ambos, contudo, é muito diferente. Cony escreveu seu "Quase memória" para recuperar as lembranças perdidas do pai e, portanto, para se abastecer da memória de um outro. Noll, em vez disso, narra não são para retratar a experiência vivida em duas jornadas literárias - primeiro como professor de cultura brasileira em Berkeley, na Califórnia, depois como escritor convidado para uma temporada numa casa de escritores em Bellagio, no norte da Itália. Mas, sobretudo, para recordar quem ele é. O romance realiza um corte profundo e radical no trajeto já consagrado do escritor gaúcho. O livro estará nas livrarias em meados de outubro, sob o selo da Objetiva.
"Creio que esse livro traz uma certa serenidade que adquiri, um pendor natural de minha idade, que me traz uma quietude maior diante do caos do mundo", avalia. Constatação que vem expressa assim, em determinado momento do romance: "Preferiram então se aproximar, não exatamente um do outro, mas de um núcleo qualquer onde pudessem reatar em paz o compromisso com as coisas." Noll já falou, abertamente, dos aspectos-esquizóides de sua escrita, como ele mesmo define. "Tenho dificuldades de viver como real. Eu sou um esquizóide", diz. Mas, nesse ponto, não poupa a própria literatura: "Isso foi-decorrência de minha opção insana pela escrita." Escrever individualiza, traz também cava um abismo em tomo de quem escreve. Duas coisas numa só, Berkeley em Bellagio.
Depois de uma obra celebrada, com romances como "Hotel Atlântico" e "Harmada" e "Canoas e marolas" (seu livro mais vendido, que já ultrapassou os a casa dos 70.000 exemplares e cuja escrita se aproxima muito da poesia), Noll toma agora duas decisões temerárias, mas audaciosas: a de narrar
voltado para si mesmo (e aqui vigora o desejo explícito de "encontrar um novo realismo") e, a mais arriscada delas, a de escrever, em pleno século XXI, uma simples história de amor. É verdade que se trata de um amor homo-erótico, o que já evidencia certo desvio de rota, -que afinal define sua literatura. Mas que o leitor não espere de Noll nem o escândalo nem o pedantismo. "Não me sinto mais com disposição para a rebelião exasperada diante das coisas", admite, e tal proposta se evidencia no desfecho, afinal bastante convencional, do livro. Ainda as~ sim, "Berkeley em Bellagio" é, provavelmente, o livro mais anficonvencional de Noll, e não só isso, mas ainda o mais explosivo. "Creio que escrevi um romance gay, não tanto pelo tema, mas, sobretudo, pelo estilo." A palavra, certamente, lhe trará muita incompreensão, mas ele não se atemoriza.
Em certa medida, "Berkeley em Bellagio" retoma a escrita barroca, detalhista, sobrecarregada, que marcou o início de seu trajeto literário, e que se intensificou num livro como "A fúria do corpo". "Não me deixei guiar pelo desejo de confortar o leitor", diz.

"O leitor tem de trabalhar comigo durante a leitura, pois me entreguei a um estilo de frases longas e tortuosas, que é trabalhoso mesmo." No entanto, apesar desse aparente passo atrás, Noll escreve de modo bem mais limpo, ou, como ele mesmo diz, "de uma maneira que não admite os detritos."
É, de fato, uma narrativa irretocáveL, que revira a obra de Noll de ponta cabeça e por certo surpreenderá mesmo seus Leitores mais fiéis. Em vez de falar em barroco, o escritor prefere pensar, porém, num "estilo gay", pelo que o romance guarda de decorativo, cheio de adereços, alinhavos e maneirismos. É um romance, sem dúvida, de grande coragem pessoal, mas Noll gosta de pensar de outro modo: "Não chega a ser um ato de coragem, é que não tive outra opção mesmo." Com isso, ele vem se perfilar entre aqueles escritores que escrevem não para cumprir um projeto, mas por surtos, para quem a literatura existe, antes do ato, como submissão a um destino. A narrativa de "Berkeley em Bellagio" não guarda coerência nem de tempo nem de espaço: ora se está no passado, ora no futuro; num momento em Berkely, Califórnia, noutro em Bellagio, Itália, e grande parte dos episódios transcorrem, a rigor, em certo espaço intermediário (e abstrato) entre eles. Estratégia que Noll define como "não causal e não normativa".
O livro, é escrito em linguagem direta, brutal, abrindo cenários nos quais a imaginação se desenrola impregnada, grudada mesmo ao real. "Creio que vim sofrendo uma grande influência da literatura norte-americana", arrisca, numa breve auto-análise. "Venho sentindo, há tempos, a pressão de um pendor empírico, sensualista, estou envolvido num certo empirismo mesmo"; diz. Não é à toa que Berkeley se refere também ao célebre filósofo irlandês George Berkeley (1685-1753), para quem nada existe fora da percepção e da sensação. Berkeley desconfiava da linguagem, achava que o ser é aquilo que é percebido, e não falado. Dai a primazia da experiência em sua filosofia. Tendência, segundo Noll, que apontava no sentido do "novo realismo" que hoje ele se empenha em buscar.
"Acontece que busquei uma coisa, e encontrei outra", admite, apontando a fronteira em que a filosofia se diferencia e se choca com a literatura. Em vez de chegar a um relato próximo da transparência da fotografia, pautado pela nitidez e pela clareza, o ímpeto realista de Noll empurrou-o rumo a um universo em fragmentos, em que as noções de tempo e espaço se enfraquecem, uma realidade que, ela também, coxeia e falha.
"Ainda assim, acredito, não deixa de existir em meu livro uma forte objetividade", diz. Como o universo real está aos pedaços, ao narrador só resta captar lampejos e faíscas, mergulho no real que, Noll admite, desaguou "em certa atmosfera poética". E diz mais: "É engraçado, fui procurar a objetividade e encontrei a poesia. As coisas não vieram como eu esperava, mas vieram como elas são." Poucas narrativas recentes, de fato, guardam o teor de contemporaneidade encontrado em "Berkeley em Bellagio". Muitos escritores ingênuos continuam a buscar o realismo ou no mundo concreto ou na própria história, ilusões de que Noll soube escapar. "Trabalho com um tempo que não é utilitário e não vai ter nenhum resultado prático."
Submeter-se ao que encontrou, mesmo contrariando com isso o que antes desejava, configura, no entender de Noll, a verdadeira ética do escritor. "A postura ética é, sobretudo, fidelidade a você", diz. Não ao que o sujeito pensa que é, mas ao que é antes de pensar. "Descobri que não é preciso ter a angústia de ser autêntico, basta ser." A fidelidade de que fala é irracional - não se trata de uma intenção, mas de um estado do ser. Novamente tomando as palavras de seu narrador: "Como se só na convulsão pudesse remediar um erro que ainda não tivera tempo de notar dentro de si." Quer dizer, o corpo se antecipando à mente - como nas histéricas clássicas de Freud.
Noll já declarou, como seu narrador em "Berkeley em Bellagio", que foi uma espécie de "déficit lingüístico" que o levou à literatura. Não que a literatura seja o sintoma de uma doença. Não, não se trata de um desvio, um erro, mas de algo que configura a estrutura do ser humano. "Eu não poderia chamar isso de escolha", diz o narrador do romance e Noll repete com grande serenidade. Escrever seria, então, um modo de se conectar com aquilo que o real fez do escritor - e, nesse caso, o realismo passa necessariamente pelo destino individual. Deslocado, até de sua própria Língua - aquela que, afinal, se oferece como último nicho quando se está em algum lugar distante como Berkeley, ou Bellagio. "Apesar disso ninguém precisa temer porque a ficção não vai morrer." Ao contrário, é dessas impossibilidades que ela toma sua força.
Tanto que, no desfecho de "Berkeley em Bellagio", o leitor se depara com um clássico final feliz, solução que pode parecer tão comum e enxovalhada. "Ao contrário, o amor como necessidade de se fundir ao outro é a única saída", diz Noll. E só um escritor muito seguro de si pode escrever um magnífico livro para chegar a tão simples conclusão.