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Depoimentos:

O Avesso do Conhecimento

In: O Lugar do Escritor de Eder Chiodetto, Cossac&Naify

"Acabei de comprar um apartamento e nele pretendo ficar pelo resto da vida. Porto Alegre é a minha casa. Eu agora quero o sofá, sim, quero me restaurar, mesmo que com rasuras, essas não deixam a gente mentir. Toda a minha desenraização tem só um quê de romântico, nada mais do que um simples quê. O fato de ter vivido num hotel e de escrever à mão, tudo isso que poderia à primeira vista parecer glamour, não o é, de fato, mas sim dados de uma condição que vinha de uma opção insana que fiz há uns quinze, vinte anos pela literatura - no sentido de ser um escritor full-time, o que me fez viver algum tempo sob tetos alheios, escrever meus livros na casa de veraneio de um irmão em pleno inverno, para poder manter um espaço só meu para criar. Nesse panorama, custei um tanto para me sentir seguro geograficamente para poder conservar comigo uma máquina da estatura de um computador, sem ter de carregá-lo pelas estradas da vida como um saltimbanco ou sem-teto, que de fato fui. Não conto isso para bancar o mártir. Mas foi realmente assim e faria tudo de novo.
         O que gostaria de expressar aqui, enfim, é que a minha vida comprova um pouco as minhas velhas teses materialistas, minhas e da minha geração: ou seja, são as condições materiais que promovem fundamentalmente a nossa ciência desejante, isso que os piedosos chamam de alma. O que são as imagens para um escritor? Acho que são a agudização extremada da aparência do mundo para dar sentido às suas feições e entrechoques. Mas procuro não pecar por excesso na composição das minhas imagens romanescas. Não reconheceria, por exemplo, a fisionomia de um personagem meu, sobretudo do protagonista (que é sempre o mesmo, graças a Deus!) se o visse na rua. Gosto das manchas, mais do que dos contornos qualificados, esses que dão significados inequívocos. Literatura não é sensatez, pedagogia. Ë um conhecimento às avessas, como se você precisasse transfigurar o mundo para poder extrair algum substrato do seu mistério - pois esse, sim, deve ser reconstituído a partir da tal Diáspora que os mitos literários recontam sem cessar. Trabalho muito o texto depois de pari-lo, é claro. E como se a gente limpasse as gosmas do nascituro."


BIOGRAFIA EM BERKELEY EM BELLAGIO 
‘‘De biografia tem o seguinte. Entre 96 e 98 dei uns cursos de literatura brasileira contemporânea em Berkeley. Depois, no início deste ano passei um mês e pouco como convidado para me concentrar em algum trabalho que estivesse fazendo em Bellagio, que fica ao norte da Itália, perto dos Alpes. Não imaginei, porque esse romance já estava em andamento, não imaginei que Bellagio fosse entrar pelo meu romance adentro. Não é pouco comum nas coisas que fabrico, porque estou muito aberto ao momento, às coisas que estão acontecendo.’’ 

BERKELEY, A CIDADE OU O FILÓSOFO? 
‘‘É a cidade ao lado de San Francisco, a gente vai de metrô, tanto que eu via a ponte Golden Gate da minha casa. No livro, também é o filósofo irlandês, que era bispo, muito sensualista, que achava que ao botar empirismo na percepção direta, você poderia ter uma apreensão da realidade e não tanto através da linguagem, porque ele achava a linguagem algo pirocténico, que cobria em vez de desvelar. O narrador, em certo momento, ele se considera Berkeley, o bispo, mas bispo é o artista plástico Artur Bispo do Rosário, considerado louco. Sente-se Berkeley, caminhando pelos campos de Bellagio.’’ 

LINGUAGEM 
‘‘Sou um escritor de linguagem, pelo método com o qual escrevo fica claro isso. Tento captar a realidade através do que a linguagem me indica. Nesse sentido, sou o oposto de Berkeley. Realmente, o que vai puxar, me arrastar, me movimentar em direção à ação do livro não é uma idéia de conteúdo prévio, mas é aquilo que a linguagem vai abrindo para mim. Como se realmente a linguagem fosse um exercício desejante de ação. Ação não no sentido norte-americano, evidentemente, de cinemão, mas no sentido de que o personagem começa de um jeito e vai terminar de outro. Acredito nisso, acredito na possibilidade de um argumento, sim, na história humana. Isso não quer dizer que tenha uma linha progressiva, uma finalidade angelical, nada disso, mas existe a possibilidade de você conhecer profundamente o seu próprio movimento. O homem não é um bicho estagnado. E só existe ficção por isso e não para usar a ação como uma peripécia atordoante que valha por si mesma. Mas o que vai me levar a essa ação, a essa verdade humana que é o momento, é a linguagem. Ela é o abre-te sésamo deste novo mundo.’’ 

MESMO PERSONAGEM 
‘‘Esse livro é escrito na primeira e na terceira pessoa. É um jeito de me divorciar desse homem. Esse homem que perpassa toda a minha ficção, embora não tenha continuidade ipsis literis, esse homem é uma coisa em cada ficção, mas é sempre o mesmo personagem. E de certa forma quero talvez ter a possibilidade de transcender esse tipo de inadequação e conhecer outras. A inadequação é da condição humana. Enquanto você não se funde ao cosmos, você é inadequado. Ele consegue uma certa dose de fusão nesse livro, porque conhece a condição amorosa. Nada assim muito efusiva, apaixonante, porque ele ao mesmo tempo não tem a capacidade da recordação, está meio amnésico, pode ser que tenha um aneurisma. Nem lembrava dessa relação amorosa quando chega em Porto Alegre, a primeira reação dele é de rejeição. Agora, vai fazer com que o português volte pela boca de uma criança. A criança também é a pátria, não é só a língua que é pátria.’’ 

PERSONAGEM COM NOME 
‘‘É a primeira vez que ele tem nome, só fui me dar conta disso estes dias. Terminei o livro e achava que o personagem também não tinha nome. Depois é que um jornalista fez referência ao momento em que ele está com um americano e como eles não têm o til do João, ele brinca assim no ar de fazer um til da palavra João. E, claro, é João esse personagem, e não podia ser outro. Não apenas porque é meu nome próprio, mas porque João é João, é aquela coisa comum. Tem um lado confessional, só que mais assim interno, imaginário, eu acho. É minha existência que move minha ficção. Mas até hoje não me senti um escritor autobiográfico. Apenas nesse livro começo a achar que tem marcas mais biográficas, na medida em que se não tivesse ido a Berkeley e a Bellagio, não teria escrito esse livro. Agora, é claro que 70% do que ele contém de história realmente eu não tive. Algumas coisas quisera eu ter vivido, mas não vivi.’’ 

ERRÂNCIA E MUNDIALIZAÇÃO 
‘‘Fiquei uma época bastante errante, mas isso está acabando. E isso se reflete inclusive nesse livro, a vontade realmente de se responsabilizar por uma criança, de ter participação ativa na formação e manutenção desse ser. É uma idéia nova que está aí, na ficção. Quero ter uma casa agora, quero o melhor para ele agora, sem ignorar que os conflitos estão aí, a gente se debate mesmo, a gente esperneia, mas acho que talvez... Quero esse cara com aquela felicidade possível de um casal, que vem pairando e ameaça um dia um rompimento, que aquilo se esfarele. Não quero realmente um happy end de exaltação, de carro alegórico. Ele volta para a cidade, mas é uma cidade em expansão, que se debruça sobre si mesma. Vai apresentar aquela que pode ser a filha dele, e que adota, e que divide a paternidade com outro homem, e leva essa menina para um campo de refugiados para que conheça outra menina que não sabe ainda a língua dela, o português. E talvez consiga uma ponte lingüística. É um livro em expansão. Nada contra as raízes, mas que essas raízes se expandam. É um livro que adere a uma certa mundialização.’’ 

O INÍCIO 
‘‘Nunca sei aonde vão dar os meus romances, sou um trabalhador muito compulsivo. Tanto que a última coisa que escrevo é o início. Porque o início funciona como um aquecimento para que eu exercite a linguagem, até que encontre o meu tom, o caminho. Aí depois, quando termino de escrever o livro, amputo esse início e refaço em função daquilo que escrevi depois.’’ 

CONFLITOS 
‘‘Falo em movimento porque sou ficcionista. O poeta talvez não precisasse falar em movimento, pode fazer apenas uma ode, cantar, cantar Brasília. Mas o narrador lida com conflitos, com impasses, ele lida com a possibilidade de você se extrair desses impasses, se extrair dos conflitos, solucionar os conflitos, que às vezes podem ser uma felpa na alma do personagem central, que o invalida, que o paralisa de uma forma ou de outra. Acredito na possibilidade de movimento através da própria linguagem. Sou um autor de linguagem, mas não um autor formalista. Não estou aqui para fazer floreios estruturais, só acho que o exercício da linguagem tem uma força estruturante que nos leva ao significado, que possa ter num romance, num conto, numa novela. O significado não é prévio, não antecede ao exercício da linguagem. É um a posteriori, um resultado desse exercício, dessa flexão, mesmo, entre você e a linguagem, entre você e o instante. Não que eu faça um ludismo com a linguagem, não faço jogos, não é nada vanguardeiro, mas a linguagem me emancipa, no sentido de que ela vai dando braçadas, vai tateando, me ajuda a tatear, até que eu me esqueça de mim mesmo e vai em direção a essa possibilidade do movimento ficcional.’’ 

Correio Brasiliense
10 de novembro de 2002